FUGESP
Revista de Hepatologia - FUNÇÃO HEPÁTICA 1 - METABOLISMO DAS BILIRRUBINAS
Novembro/Dezembro 2000

ESTEATOSE HEPÁTICA

Dra. Cláudia Pinto Marques Souza de Oliveira
(Reprodução eletrônica)

INTRODUÇÃO

Esteatose Hepática (infiltração gordurosa do fígado) é uma das alterações hepatocelulares mais freqüentes, constituindo um achado comum em biópsias hepáticas.

Evidências circunstanciais sugerem que a esteatose pode ser uma das causas etiopatogênicas da doença crônica do fígado.

A obesidade, diabetes, dislipidemias, "bypass" jejunoileal, nutrição parenteral prolongada e uso de drogas têm sido relatados como fatores predisponentes à instalação da esteatose hepática.

Algumas hipóteses vêm sendo consideradas na fisiopatogênese das esteato-hepatite não alcoólica, entre elas:

  1. A injúria hepática poderia ser desencadeada por endotoxinas e citocinas,
  2. Ou pelo aumento do estresse oxidativo hepático.

A primeira sugere que o acúmulo de gordura no hepatócito, seguido de inflamação, possa derivar da ação de endotoxinas e citocinas liberadas em situações patológicas.

Esta teoria foi inicialmente sugerida por Haines e col., observando a alta incidência de esteatose e cirrose em pacientes submetidos a "bypass" jejunoileal para controle da obesidade.

Segundo estes autores, a cirurgia por si acarreta endotoxemia portal que estimula as citocinas, desencadeando assim a resposta inflamatória.

Além disso, o uso de antibióticos reduziu a esteatose e o risco de insuficiência hepática nestes pacientes.

Outro fato recente que corrobora esta hipótese é que alguns autores, estudando camundongos geneticamente obesos que têm esteatose espontânea, observaram que estes animais apresentam prejuízo na função fagocítica e sensibilidade aumentada à endotoxina, sugerindo que a endotoxemia pode ser um dos mecanismos patogênicos da esteatose.


Contudo, esta teoria não parece explicar claramente a esteatose em outras condições clínicas que não a obesidade e suas entidades associadas (diabetes, dislipidemias).

A outra hipótese que vem sendo aventada é de que exista um aumento do estresse oxidativo hepático que promoveria lipoperoxidação de membranas, ativação de células inflamatórias e de citocinas, estímulo das células de ITO e, conseqüentemente, fibrogênese.

Esta teoria parece mais atraente, pois se enquadra na grande maioria das condições clínicas que estão associadas com esteatose / esteato-hepatite.

O estresse oxidativo seria conseqüência do aporte aumentado de ácidos graxos livres ao fígado, excedendo assim a capacidade oxidativa da mitocôndria hepática.

Esta geração excessiva de partículas reativas de oxigênio, em última instância, causariam a lipoperoxidação de membranas.

Os metabólitos da lipoperoxidação da membrana do hepatócito (como o malonaldeído) e as partículas reativas de oxigênio são importantes agentes pró-inflamatórios que parecem ativar as células de ITO, favorecendo a fibrogênese.

Baseado nesta última hipótese, de que o estresse oxidativo pode ser um dos mecanismos importantes na gênese da esteatose / esteato-hepatite, propusemos o seguinte estudo:

  1. Avaliar o papel do estresse oxidativo na gênese da esteatose hepática experimental em ratos;
  2. Correlacionar o estresse oxidativo hepático a aspectos clínicos, laboratoriais e anatomopatológicos em ratos com esteatose induzida por dieta deficiente em colina.

MATERIAL E MÉTODOS

  1. Animais e Preparação Experimental
    Ratos Wistar, do sexo masculino, com peso de 300-350 g provenientes do Biotério da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo foram distribuídos em dois grupos por meio de tabela de classificação seqüencial randomizada:
  • Grupo I (G1): animais com dieta deficiente em colina (4 semanas)
  • Grupo II (G2): animais com dieta deficiente em colina (12 semanas)
  • Grupo III (G3): animais com dieta com colina (12 semanas-controle)

Os animais foram mantidos em gaiolas apropriadas, recebendo água e ração balanceada com ou sem colina, dependendo do grupo em que foram sorteados. Permaneceram em dieta com ou sem colina por 4 ou 12 semanas e, após este período, todos os animais foram sacrificados retirando-se plasma para avaliação bioquímica e fragmentos do tecido hepático para avaliação histológica e do estresse oxidativo.

  1. Avaliação da Lesão Hepatocelular
    Anatomia Patológica
    Fragmentos de tecido hepático foram fixados em formol salino a 10% e submetidos a colorações Hematoxilina-eosina (HE), Tricrômio de Masson, Perls para pigmentos, SCHARLACH R para gorduras neutras e impregnação do retículo por sais de prata. Foram semi-quantificados de 0 a 3+ os seguintes parâmetros histológicos:
    esteatose micro e/ou macro, sua distribuição zonal, infiltrado inflamatório e sua distribuição zonal, fibrose portal e perivenular, necrose focal.

Bioquímica
Realizada punção cardíaca no animal ainda vivo e retirados 3-4 ml de sangue do ventrículo. Posteriormente, as amostras séricas foram centrifugadas a 3.000 rpm durante 10 minutos (centrífuga Excelsa Baby II modelo 206-R) e analisadas à UV (ultravioleta).
Foram determinados os níveis séricos de AST, ALT, colesterol e triglicerídeos.

  1. Avaliação do Estresse Oxidativo Hepático
    A formação dos radicais superóxido (O2) por fragmento de tecido hepático ex vivo foi determinada por quimiluminescência amplificada pela lucigenina.
    O fragmento hepático imediatamente após o sacrifício foi lavado com solução salina e colocado em tubo de ensaio contendo solução de Krebs-Hepes. O tampão foi mantido em pH = 7.4, a 37ºC, continuamente borbulhado com mistura de O2, 95% e CO2, 5% por 30 minutos. Posteriormente, o tecido hepático foi colocado no luminômetro Berthold acrescentado de lucigenina (bis-N-methylacrydinium; Sigma Chemical Co., St Louis, USA). Após contagens, os fragmentos foram secos em estufa 60ºC e pesados. Em cada animal, as contagens médias foram normalizadas para peso seco do tecido hepático e os valores expressos em contagens por minuto por miligrama de peso seco (cpm/mg/min x 103).
  1. Análise Estatística
    Os dados foram expressos em médias ± DP. O valor de p considerado significante foi < 0,05 por ANOVA.

RESULTADOS

Tabela 1 - Valores Séricos das Enzimas Hepáticas, Colesterol e Triglicerídeos e valores numéricos da Luminescência Amplificada pela Lucigenina.

G
N
AST
ALT
Colest.
Triglic.
Luminescência
G1
6
108 ± 3
40 ± 1
36 ± 1
88 ± 3
1393 ± 790
G2
6
158 ± 6*
27 ± 8
55 ± 1
146 ± 3
7191 ± 500
G3
6
26 ± 2
34 ± 5
40 ± 7
42 ± 7
513 ± 170

p < 0.05 G1 e G2 x controle (G3); ‡ p < 0.05 G2 x G1
*p < 0.05
Dados expressos em média ± DP

Contagens de luminescência expressas em cpm/mg/min 103
Valores normais em U/L da AST = 10-34; ALT = 10-44;
Colesterol e triglicerídeos até 200.

Foto 1 - Esteatose macrovesicular grau II, de distribuição nitidamente periportal (HE, aumento 40x).

Foto 4 - Esteatose macro e microvesicular, de distribuição periportal, mais intensa em G2 (HE, aumento 40x).

DISCUSSÃO

A relação causal entre Esteatose / Esteato-hepatite Não Alcoólica, fibrogênese e doença crônica do fígado, assim como sua patogênese, permanece pouco conhecida.

Induziu-se esteatose hepática em ratos com dieta deficiente em colina e se observou infiltração gordurosa macro e microvesicular periportal em todos os animais submetidos à dieta.

Os achados anátomo-patológicos apresentaram estreita correlação com o aumento do estresse oxidativo hepático e com a elevação dos triglicerídeos séricos e da AST nos grupos que receberam a dieta sem colina, quando comparados com o grupo controle.

Estes achados foram mais severos no grupo que utilizou dieta sem colina por tempo mais prolongado.

Não observamos nos animais submetidos à dieta deficiente em colina, nem mesmo naqueles submetidos a 12 semanas, a clássica descrição para esteatohepatite não alcoólica, que além da esteatose apresenta processo inflamatório, necrose e graus variados de fibrose.

Teramoto e col. (12), testando se a esteatose contribui para falência do enxerto hepático no transplante, também não encontraram fibrose nos animais submetidos à dieta deficiente em colina e metionina.

Da mesma forma, Lettéron e col.(13), utilizando drogas (dexametasona, metionina, tetraciclina, amiodarona) para induzir à esteatose, não observaram fibrose ou infiltrado inflamatório.

Contudo, existe relato de que a dieta deficiente em colina e/ou metionina pode propiciar o surgimento de insuficiência hepática e renal (14).

O fato de os ratos não terem desenvolvido fibrose e/ou inflamação sugere que estes animais sejam mais resistentes à fibrogênese, necessitando de fatores adjuvantes como álcool, lipopolissacárides, diabetes, ou que o tempo utilizado por nós e por outros tenha sido insuficiente para desenvolver inflamação e fibrose.

Curiosamente, a distribuição zonal da esteatose no rato foi predominantemente periportal enquanto que no homem é predominantemente de zona III ou próximo à veia centro-lobular.

A máxima gradação de esteatose macro e microvesicular foi encontrada no grupo submetido a 12 semanas de dieta sem colina. Neste grupo constatou-se também elevação da AST e dos triglicérides, não tendo sido observadas alterações significativas nos parâmetros bioquímicos de ALT e do colesterol.

O estresse oxidativo medido por quimiluminescência amplificada por lucigenina foi nitidamente maior nos grupos com privação da colina, e também foi mais elevado no grupo que usou a dieta por tempo prolongado.

A quimiluminescência mede a reação química de compostos eletricamente excitados que emitem luz ao retornar ao seu estado basal. Quando amplificada pela lucigenina, mede indiretamente a produção do radical superóxido. Apesar de suas limitações por ser um método indireto, constitui um método adequado para avaliar a produção de espécies reativas de oxigênio quando utilizado comparativamente.

Na patogênese da esteato-hepatite não alcoólica existe a hipótese de haver um aumento do estresse oxidativo hepático.

Neste estudo, observamos um significante aumento na luminescência dos fígados de animais submetidos à dieta deficiente em colina e, novamente, foi maior no grupo com 12 semanas de dieta. Este estudo corrobora a hipótese que o estresse oxidativo participa da gênese da esteato-hepatite, pois evidenciamos que o estresse oxidativo aumenta à medida que o animal é exposto ao agente agressor por mais tempo, tendo tal fato ocorrido nos três aspectos estudados: bioquímico, histopatológico e do estresse oxidativo.

CONCLUSÕES

  1. O estresse oxidativo encontra-se aumentado na esteatose hepática experimental.
  2. A produção de espécies reativas de oxigênio se acentua ao longo do tempo do experimento.
  3. Embora não se tenha obtido modelo histológico típico de NASH, as alterações produzidas pelo estresse oxidativo podem ser uma etapa importante na patogênese da NASH.
 

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