FUGESP
Revista de Gastroenterologia da Fugesp - HELICOBACTER PYLORI: ASPECTOS ATUAIS
Mar/Abr-2002

ENDOSCOPIA EM AÇÃO

*Manoel Passos Galvão Neto,
**Artur Parada, *Paula Bechara Poletti,
*Thiago Secchi e *Ying S. Tung

CÁPSULA ENDOSCÓPICA. EXPERIÊNCIA INICIAL NO BRASIL.

I - ASPECTOS TÉCNICOS

A endoscopia digestiva consegue diagnosticar com segurança as patologias do esôfago, estômago e duodeno através da endoscopia digestiva alta e as patologias do íleo terminal, cólon e reto através da colonoscopia. Até o momento, nenhum método endoscópico conseguiu avaliar de modo prático e rotineiro toda a extensão do intestino delgado a não ser através da enteroscopia, que é um exame endoscópico que permite avaliar o início do intestino delgado (terço proximal do jejuno) na sua modalidade "push" ou mesmo todo o intestino na modalidade "sonda", porém é pouco realizado devido a sua complexidade, duração prolongada e necessidade de hospitalização e/ou anestesia geral. Além da dificuldade de acesso endoscópico, os outros métodos diagnósticos diretos ou indiretos do intestino delgado (R-X contrastado, Tomografia Computadorizada, Ressonância Nuclear Magnética, Cintilografia) deixam a desejar em termos de precisão e praticidade.

A tecnologia utilizada no desenvolvimento da cápsula endoscópica foi gerada pelo Dr. Gabriel Idam, que era o chefe da divisão de "design" etretro-óptico de uma divisão do exército israelense chamada Rafael. É uma tecnologia semelhante à utilizada nas bombas inteligentes que atingem alvos com precisão, guiadas por telemetria (1) . Em agosto de 2001, o F.D.A. americano liberou para uso um equipamento denominado GivenÒ Diagnostic Imaging System, conhecido como "Cápsula Endoscópica", que é um sistema ambulatorial de endoscopia sem fio acondicionado numa cápsula com dimensões de 11 X 26 mm, descartável, com bateria de duração entre 6 - 8 horas. Tem capacidade de tirar 2 fotos/segundo sob iluminação de 4 L.E.D sincronizados, realizar o processamento inicial e transmitir por antena própria sinais de telemetria que são captados por sensores colocados no abdome do paciente e conectados a um cinturão com um computador compacto que faz o papel de gravador/processador dos sinais emitidos pela cápsula. Ao final de 8 horas decorridas da ingestão da cápsula, os sensores (não descartáveis) e o gravador são removidos do paciente, promovendo-se então o "download" das cerca de 50 mil imagens geradas no exame durante mais 2 horas para uma "workstation" (cada "workstation" vem equipada com dois "kits de gravação" compostos de um cinturão, uma fita de sensores, 2 baterias recarregáveis e 1 gravador cada, acondicionados em maleta própria). Após o "download", a "workstation" gera um vídeo de todo o exame, o qual está então pronto para análise, permitindo ao médico examinar com precisão o trajeto da cápsula da boca até o ponto em que ela se encontrava ao término do exame (normalmente já no intestino grosso).

Do vídeo gerado pela "workstation" podem ser extraídas fotos no formato JPEG para impressão de alta definição ou exportadas para arquivo digital, além de vídeos digitais no formato AVI com 50 segundos de duração relativos a 25 segundos (50 fotos) antes e 25 segundos (50 fotos) depois da imagem selecionada para análise, e que podem ser gravados em CD-ROM pela própria "workstation". A cápsula não é reaproveitada: é expelida naturalmente durante a evacuação (2). Em que pese o fato de que todo o trajeto do tubo digestivo pode ser registrado pela cápsula, é no intestino delgado que ela oferece precisão, obtendo resultados superiores quando comparada individualmente ou em conjunto com os outros métodos diagnósticos aplicáveis ao intestino delgado e, sobretudo, revelando imagens nunca antes conseguidas e cada vez mais surpreendentes no seu espectro (3,4).

II - ASPECTOS CLÍNICOS - ENDOSCÓPICOS

Sindrome de Peutz - Jeghers (hamartomas do delgado).

Na "Digestive Disease Week" (DDW) de 2002 em San Francisco, Califórnia, foram apresentados nada menos que 47 temas livres e pôsteres sobre estudos de cápsula endoscópica envolvendo cerca de 1.000 pacientes de diversas partes do mundo (5) . A maior parte desses estudos demonstrou que o exame do intestino delgado com a cápsula endoscópica é significativamente superior aos métodos convencionais do estudo do delgado, como o trânsito radiológico intestinal com bário e a enteroscopia na sua modalidade "push". Ernest G. Seidman, do Hospital Saint-Justine de Montreal (5), apresentou o primeiro estudo de cápsula endoscópica em pacientes pediátricos e adolescentes com suspeita de patologias de intestino delgado, incluindo doença de Crohn, polipose intestinal e sangramento intestinal oculto. Nesse estudo, a cápsula foi capaz de fornecer diagnóstico em 82% dos casos, sendo superior à enteroscopia e ao trânsito intestinal. David Fleischer, da Clinica Mayo de Scottsdale (5), comparou a acurácia da "push enteroscopy" do trânsito intestinal com bário e da cápsula endoscópica em 12 pacientes com sangramento digestivo oculto, nos quais a cápsula conseguiu demonstrar alterações no intestino delgado em 83% dos pacientes contra 42% da enteroscopia e 0% do trânsito intestinal. Ainda nesse estudo, todas as lesões identificadas pela enteroscopia foram também identificadas pela cápsula. Em estudo multicêntrico realizado na França, Michel M. Delvoux, de Nancy (5), comparou a cápsula endoscópica com a "push enteroscopy" em 59 pacientes com sangramento intestinal oculto; nos 57 pacientes que completaram o estudo, a cápsula foi significativamente mais precisa no diagnóstico de lesões intestinais relevantes. Já um estudo conduzido por Guido Costamagna, de Roma (5), analisou o trânsito intestinal e a cápsula endoscópica como primeiros exames a serem realizados em pacientes com suspeita de doenças do intestino delgado e concluiu ser a cápsula superior ao trânsito intestinal nessa situação. Outro trabalho apresentado no DDW de San Francisco foi conduzido por Ingrid Demedts (5), da Bélgica, que utilizou a cápsula em 13 pacientes que apresentavam sangramento intestinal oculto e nos quais a enteroscopia, o trânsito intestinal e a cintilografia não encontraram a fonte do sangramento. A cápsula endoscópica foi capaz de identificar a origem do sangramento em todos os pacientes. Apenas em uma publicação encontramos referência a ter sido a cápsula endoscópica inferior no diagnóstico de hemorragia digestiva oculta: foi o trabalho apresentado por André Van Gossum, de Bruxelas, Bélgica (5), que avaliou 21 pacientes. Conseguiu detectar lesões de intestino delgado que pudessem ser responsáveis pelo sangramento em 28% dos pacientes utilizando os dois métodos, sendo que a "push enteroscopy" conseguiu identificar mais lesões do que a cápsula.

A cápsula endoscópica foi lançada no Brasil em dezembro de 2001, durante o I Curso Brasileiro de Endoscopia Terapêutica, realizado na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, no qual foi realizado o primeiro exame com a cápsula endoscópica pelo Serviço de Endoscopia do Hospital Nove de Julho. Esse primeiro caso foi o do paciente R.M.S., masculino, 48a, sem antecedentes, que apresentou quadro de HDA caracterizado por melena. A endoscopia digestiva alta revelou lesões elevadas gástricas de coloração vermelha, variando de 1 a 4 cm nos seus maiores eixos, com comprometimento da submucosa; a endossonografia e a colonoscopia foram normais; as biópsias gástricas revelaram o dignóstico de Sarcoma de Kaposi. Não foram evidenciados restos de sangue ou sangramento ativo no momento de exame. Antes de concluir a investigação, o paciente apresentou novo sangramento e nova endoscopia digestiva alta foi realizada, assim como uma colonoscopia sem evidências de sangramento ativo, apesar da presença de sangue digerido no cólon e íleo terminal. Devido à presença das lesões gástricas, uma "push enteroscopy" foi realizada sem achados patológicos. O paciente foi, então, encaminhado para o exame da cápsula endoscópica, que detectou as lesões gástricas e lesões elevadas hiperêmicas em jejuno distal com sangramento ativo por porejamento, fechando assim o diagnóstico de comprometimento intestinal pelo Sarcoma de Kaposi e localizando o sítio do sangramento.

A partir de então, os primeiros 20 exames consecutivos foram analisados na forma de relatos de caso durante o período de janeiro a junho de 2002. Foram 11 pacientes do sexo feminino (55%) e 9 do sexo masculino; a idade variou entre 16 e 68 anos (M = 47,6a). 90% tinham endoscopia e colonoscopia, 45% enteroscopia, 50% trânsito intestinal e 25% transfusão sanguínea. Todos os pacientes foram submetidos a exame de cápsula endoscópica, tendo seus resultados comparados com os exames de avaliação convencional do intestino delgado. Foram registrados efeitos colaterais e tempos de trânsito da cápsula. A cápsula encontrou achados patológicos em 19 dos 20 pacientes da série. As patologias encontradas foram divididas em Hemorragia Digestiva Oculta/Obscura (58%), Doença Inflamatória Intestinal (21%), Polipose (5%) e outras (16%). Não foram relatados efeitos colaterais ou complicações atribuíveis ao procedimento. Quando comparada com a "push enteroscopy", a cápsula teve uma positividade de 95% contra 33,3%. O tempo médio de trânsito da cápsula foi de 3,77 segundos no esôfago (min. = 1 s, max. = 10 s), 94 minutos no estômago (min. = 2 min, max. = 190 min) e 190 minutos no delgado (min. = 92, max. = 368). Em um paciente a cápsula não atingiu o ceco (6,6%) devido a patologia de base (linfoma), porém o diagnóstico foi firmado e o raio-x posterior confirmou a passagem da cápsula. Desse modo, em nossa experiência inicial a cápsula endoscópica demonstrou ser um método diagnóstico seguro e eficaz, capaz de diagnosticar com precisão as patologias do intestino delgado com resultados superiores aos da "push enteroscopy".

Por fim, considerando nossos resultados e os trabalhos apresentados em congressos e as publicações, salientando-se os trabalhos de Blair Lewis de New York (6), que comparou de modo randomizado a "push enteroscopy" com a cápsula endoscópica e demonstrou a superioridade desta no diagnóstico de pacientes com hemorragia digestiva oculta, está implícita uma mudança na conduta diagnóstica frente a esses pacientes, sendo que a partir de então a cápsula endoscópica passa a ser o "terceiro exame" após endoscopia digestiva alta e colonoscopias negativas na avaliação de pacientes com hemorragia digestiva e estabilidade hemodinâmica e, de modo geral, num futuro próximo, será o "primeiro exame" a ser realizado na avaliação de pacientes com suspeita de doenças do intestino delgado.

* Endoscopista do Serviço de Endoscopia do Hospital Nove de Julho - São Paulo - Brasil
** Chefe do Serviço de Endoscopia do Hospital Nove de Julho - São Paulo - Brasil

 

www.fugesp.org.br
FUGESP - Fundação Médico-Cultural de Gastroenterologia e Nutrição de São Paulo
Rua Itacolomi, 601 - 4º andar - Conjunto 46 - Higienópolis - Cep: 01239-020 - São Paulo - SP
© Copyright 2005, FUGESP