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Revista de Gastroenterologia da Fugesp - DIARRÉIAS II: DIARRÉIAS SECRETORAS
Jan/Fev-2001

DIARRÉIAS II: DIARRÉIA SECRETORA


Dra. Claudia P. M. S. de Oliveira
Dr. Antonio Atílio Laudanna


Durante 24 horas, cerca de 10 litros de fluidos circulam pelo trato gastrointestinal. Destes, aproximadamente 8 litros são produzidos endogenamente, provenientes das secreções digestivas, entre elas: secreção salivar (1litro), suco gástrico (2litros), secreção biliar (1litro), suco pancreático (2 litros) e secreção intestinal, particularmente proveniente do duodeno e jejuno proximal (2 litros). O restante é proveniente da dieta. Assim, destes 10 litros de fluidos que passam diariamente pelo trato digestivo, cerca de 8 litros são absorvidos no intestino delgado e 1-2 litros são absorvidos no cólon, sendo excretados pelas fezes somente 100-200ml de água por dia. O trato gastrointestinal absorve, então, cerca de 98% do volume total que passa por ele durante as 24 horas.

Existe um equilíbrio dinâmico entre o fluxo de absorção e o fluxo de secreção em relação aos líquidos e eletrólitos contidos no lúmen intestinal. Quando há um desequilíbrio nestes sistemas surge a diarréia que é constituída de fezes líquidas ou líquido-pastosas com aumento da freqüência e volume das fezes.

Existem quatro mecanismos fisiopatológicos básicos de diarréia: mecanismo osmótico, mecanismo secretor, mecanismo inflamatório e de alteração da motilidade. Em algumas situações os mecanismos sobrepõem-se entre si. Neste capítulo discutiremos mais profundamente o mecanismo secretor.

A diarréia secretora é determinada por absorção diminuída de íons e água ou secreção ativa deles. Esta redução na absorção ou aumento na secreção deve-se aos seguintes mecanismos:

  1. Defeitos congênitos;
  2. Ressecção intestinal;
  3. Destruição ou redução das células epiteliais;
  4. Alteração no AMP/GM cíclico, cálcio e proteinaquinases, promovendo diminuição na absorção ou aumento na secreção, sendo este o mecanismo mais comum das diarréias secretoras. As principais causas de diarréia secretora estão dispostas no quadro abaixo:

Quadro 1. Causas Mais Comuns de Diarréia por Mecanismo Secretor

1 - INFECÇÕES INTESTINAIS
3 - DROGAS
Víbri cholera Clássico El thor Derivados antracênicos (sene, cáscara sagrada, Aloé, ruibarbo)
Rotavírus Bisacodil
Escherichia coli toxigênica Fenolftaleína
Staphylococus aureus (toxina) Oxifenisatina
Clostridium perfringens Colchicina
Shigella disenteriae Hormônios tireoidianos
Entamoeba histolytica Metoclopramida, cisapride
Salmonella

4 - TOXINAS METAIS PESADOS

Ferro

Mercúrio

Chumbo

Arsênico

Yersínia enterocolítica

2 - TUMORES NEUROENDÓCRINOS

Carcinóide

Vipoma

Carcinoma medular de tireóide

As infecções intestinais produzem diarréia secretora principalmente por elaborar enterotoxinas que agridem receptores específicos da membrana celular das células absortivas, com posterior indução do sistema adenilciclase/AMP cíclico. A toxina é absorvida nas vilosidades e criptas da mucosa intestinal e estimula os mecanismos de transporte de eletrólitos e água, aumentando a secreção de cloro e bicarbonato e reduzindo a absorção de sódio e cloro.

Exemplo clássico de diarréia secretora é àquela do "Vibrio cholerae" que produz uma toxina que ativa a adenilciclase, produzindo aumento do AMP cíclico, inibindo o influxo de Na/Cl com decréscimo na absorção de Na e água e aumento da secreção de Cl pelas criptas. O quadro clínico da cólera é variável, desde infecções assintomáticas ou formas benignas que se assemelham à gastroenterite viral, até formas graves que acarretam desidratação profunda, distúrbios hidroeletrolítico e ácido-básico, os quais necessitam de re-hidratação maciça. As características das fezes são peculiares, assumindo aspecto em "água de arroz", e são acompanhadas de vômitos secundários à acidose metabólica.

O Rotavírus, que é uma das principais causas de diarréia em crianças, tem como mecanismo principal de agressão aos enterócitos a destruição das vilosidades, reduzindo a capacidade absortiva enquanto que a cripta continua secretando íons e fluidos. Este vírus é comum em ambientes fechados como creches e hospitais, tem sido observado mais nos meses de outono e inverno e na faixa etária de 6 a 24 meses. O período de incubação está em torno de 5 a 8 dias e manifesta-se clinicamente em crianças com vômitos associados a diarréia aquosa severa, causando desidratação importante, acompanhada de febre. Com reposição de fluidos, geralmente os vômitos cessam em 2-3 dias e a diarréia em 4-5 dias, podendo prolongar-se por mais de uma semana.

Algumas bactérias, como E.coli enterotoxigênica, têm capacidade de aderir através das fímbrias à superfície do enterócito, produzindo enterotoxinas. Estas estimulam não só o sistema adenilciclase como o sistema guanil-ciclase. São duas as enterotoxinas da E.coli enterotoxigênica: uma termolábil, cuja ação secretora é via AMPc, e outra termoestável, cuja ação é via GMPc. Ambas causam desregulação da capacidade absortiva e incremento da atividade secretora, causando diarréia. A E.coli enteropatogênica é a principal causa da diarréia do viajante. Clinicamente apresenta-se como diarréia aquosa acompanhada de cólicas abdominais, náusea, febre, mialgia, com duração de 3 a 5 dias quando não tratada, raramente ultrapassando 1 semana.

Algumas drogas laxativas, como antracênicos, óleo de rícino e fenolftaleína, produzem diarréia secretora por estimularem o sistema adenil-ciclase/AMP cíclico e também por aumentarem a motilidade intestinal. Algumas delas só agem após desconjugação bacteriana no cólon.

Os tumores neuro-endócrinos (carcinóide, vipoma, carcinoma medular da tireóide) promovem diarréia secretora, principalmente por produzirem substâncias que estimulam profusamente a secreção intestinal, e inibem a secreção gástrica. As principais substâncias produzidas por estes tumores são hormônio intestinal vasoativo (VIP), calcitonina, serotonina, polipeptídio inibidor gástrico, prostaglandinas e polipeptídio pancreático. Estas substâncias parecem estimular a secreção via AMP cíclico e aumentam também a motilidade. Nestes tumores, geralmente os pacientes apresentam diarréia líquida profusa com grande número de dejeções, acompanhada algumas vezes de distúrbios hidroeletrolítico e ácido-básico.

Em um número significativo de situações agudas o diagnóstico etiológico restringe-se ao clínico-epidemiológico, já que o tratamento básico de re-hidratação oral independe do agente etiológico. Pacientes com diarréia aquosa de menos de três dias de duração, sem sangue ou muco ou febre, ausência de depleção hidroeletrolítica importante, sem comprometimento da imunidade, não sendo idosos ou crianças desnutridas não necessitam na maioria das vezes de diagnóstico etiológico, pois somente a re-hidratação oral é suficiente, já que na maioria das vezes o quadro é autolimitado.

Nos imunocomprometidos, principalmente pacientes com AIDS, que têm quadro maior que 4 dias, as culturas fezes e pesquisa de parasitas são negativas, demandando investigação diagnóstica mais aprofundada.
Diarréia do imunocomprometido será abordada em outro capítulo ulterior.

Nas diarréias agudas a desidratação é, de longe, a conseqüência mais prejudicial e freqüente, sendo responsável pelos altos índices de morbidade e mortalidade da doença, principalmente em crianças e idosos. Por isso, a re-hidratação oral constitui a medida mais importante e eficaz na maioria das diarréias agudas. Em 1978 já se falava que a reposição de fluidos e eletrólitos via oral nas diarréias agudas constituía o maior avanço médico do século.

Em virtude da maioria das diarréias agudas serem autolimitadas e necessitarem apenas de suporte hidroeletrolítico, a terapia de re-hidratação oral (TRO) com soluções glico-salinas constitui a pedra angular do tratamento.

Alguns estudos têm mostrado benefício no uso de subsalicilato de bismuto nas diarréias aquosas, por reduzirem a duração do quadro. O mecanismo de ação ainda não está bem definido, mas algumas evidências sugerem propriedades antisecretória e antibiótica pela inibição do crescimento de uma variedade de enteropatógenos.

 

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