FUGESP
Revista de Hepatologia - MORFOLOGIA HEPÁTICA (aspectos de interesse clínico)
Maio/Junho 2000

PERFUSÃO HEPÁTICA E ESTRESSE OXIDATIVO

MORFOLOGIA HEPÁTICA (aspectos de interesse clínico)

Dra. Claudia P.M.S. Oliveira
Médica pesquisadora da Disciplina de Gastroenterologia da FMUSP

O fígado, para realizar suas múltiplas funções, requer um aporte sangüíneo elevado. Em conseqüência da dupla irrigação sangüínea e grande capacidade de extração de oxigênio, o fígado apresenta certa tolerância à isquemia. Contudo, quando submetido a períodos longos de hipoperfusão, desenvolve deterioração estrutural, disfunção metabólica e alteração da microcirculação.

A lesão hepatocelular decorrente da isquemia normotérmica ou hipotérmica seguida de reperfusão (isquemia-reperfusão I/R), ainda permanece como um dos maiores obstáculos à cirurgia hepática, principalmente ao transplante hepático.

Diversos mecanismos encontram-se envolvidos na fisiopatogênese da lesão secundária à I/R. São exemplos dos mesmos a formação de radicais livres de oxigênio, peroxidação lipídica da membrana, ativação de células inflamatórias e produção de citocinas, disfunção mitocondrial e aumento do cálcio intracelular.

Estes mecanismos parecem estar inter-relacionados e se desenvolvem em duas etapas: 1) fase inicial (aguda, 1-3 horas após reperfusão) que está associada à produção de radicais livres de oxigênio e ativação das células de Kupffer; 2) fase tardia (observada 6-24 horas após reperfusão), cuja lesão está associada ao acúmulo de neutrófilos no fígado.

Radical livre é usado para caracterizar átomos ou moléculas que contém elétron não pareado na última camada, sendo por isso substâncias reativas o suficiente para causar lesão em estruturas biológicas como a membrana celular. São produzidos pelos diversos compartimentos celulares (mitocôndria, microssomos, peroxissomos e citosol) e são originados de mecanismos enzimáticos como a xantina oxidase (XO), NADPH oxidase, citocromo P-450 e de mecanismos não enzimáticos, envolvendo hemoproteinas e compostos de ferro.

Os principais radicais livres conhecidos são aqueles derivados do oxigênio. Entre eles os mais conhecidos são: radical hidroxil (OH.), radical superóxido (O2.) e radical perhidroxil (HO2.). Denomina-se estresse oxidativo o estado químico-biológico em que a produção de espécies reativas ultrapassa a capacidade antioxidante.

Na I/R, em conseqüência da redução da oferta de oxigênio, a síntese de ATP (adenosina-trifosfato) torna-se bloqueada, com aumento dos níveis de AMP (adenosina-monofosfato), que é rapidamente catabolizada em hipoxantina e xantina, que servem de substrato para a XO.

Esta enzima sob a forma oxidada é proveniente da conversão da xantina-desidrogenase (XDH) durante a hipoxia tecidual. Assim, existe na isquemia uma grande concentração de xantina, hipoxantina e da XO sob a forma oxidada. Quando o fluxo sangüíneo é restaurado, a XO reage com O2 molecular causando oxidação das xantinas e liberação de radicais livres de oxigênio como o radical superóxido.

Ocorre então a peroxidação dos ácidos graxos polinsaturados existentes nos fosfolipídios das membranas celulares com formação de novos radicais livres. A peroxidação dos ácidos graxos da membrana inicia-se através da retirada de prótons H+ pelos radicais livres, formação de dienos conjugados, posterior formação de hidroperóxidos lipídicos e, por fim, com a participação de metais catalíticos (ferro e cobre), decomposição dos hidroperóxidos e formação dos radicais alcoxil (RO.) e peroxil (ROO.).

Em conseqüência da lipoperoxidação, há perda de integridade da membrana com aumento de sua permeabilidade; alteração no fluxo de íons transmembrana; disfunção no transporte de Na+/K+, influxo excessivo de cálcio e posterior ativação de enzimas como as proteases, fosfolipases e nucleases, que autoliticamente produzem colapso das estruturas celulares, oxidação de proteínas e morte celular.

O outro fenômeno que ocorre na fase precoce é a ativação das células de Kupffer. Este fato tem sido relacionado à manipulação do fígado que ocorre na fase inicial do transplante ou nas ressecções hepáticas. Esta manipulação durante o procedimento cirúrgico causa distúrbios da microcirculação, provocando hipoxia que estimula a ativação das células de Kupffer.

Além disso, após a reperfusão do segmento isquêmico e peroxidação lipídica da membrana celular, células de Kupffer são recrutadas e juntamente com as células endoteliais produzem citocinas como o Fator Ativador de Plaquetas (PAF), Interleucina I (IL1) e Fator de Necrose Tumoral (TNF) que iniciam a resposta inflamatória.

Durante a segunda fase, denominada tardia, ocorre entrada excessiva de neutrófilos no segmento isquêmico do fígado. Estas células causam lesão hepática por três mecanismos principais: produção de radicais livres; ação direta sobre os hepatócitos por meio da degranulação e liberação de proteases; obstrução dos sinusóides. Além disso, os neutrófilos também aumentam a expressão de moléculas de adesão na superfície da célula endotelial, aumentando a aderência neutrófilo-endotelial, ampliando assim a resposta inflamatória.

As conseqüências destes mecanismos expressam-se sob a forma de alterações morfológicas, inflamatórias e degenerativas no segmento que sofreu I/R. Entre elas verifica-se: balonização dos hepatócitos, esteatose, congestão em torno da veia centrolobular, desorganização das traves de hepatócitos (destrabeculação), infiltrado inflamatório em torno da veia centrolobular e necrose hepatocelular.

Em resumo, a interrupção completa da perfusão hepática seguida de reperfusão desencadeia uma cascata de eventos patológicos que culminam com degeneração, morte celular e disfunção do fígado, constituindo nos dias atuais considerável entrave à cirurgia hepática.

 

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