ENDOSCOPIA
EM AÇÃO
*Manoel
Passos Galvão Neto,
**Artur Parada, *Paula Bechara Poletti,
*Thiago Secchi e *Ying S. Tung
CÁPSULA
ENDOSCÓPICA. EXPERIÊNCIA INICIAL NO BRASIL.
I
- ASPECTOS TÉCNICOS
A endoscopia
digestiva consegue diagnosticar com segurança as patologias do
esôfago, estômago e duodeno através da endoscopia
digestiva alta e as patologias do íleo terminal, cólon
e reto através da colonoscopia. Até o momento, nenhum
método endoscópico conseguiu avaliar de modo prático
e rotineiro toda a extensão do intestino delgado a não
ser através da enteroscopia, que é um exame endoscópico
que permite avaliar o início do intestino delgado (terço
proximal do jejuno) na sua modalidade "push" ou mesmo todo
o intestino na modalidade "sonda", porém é pouco
realizado devido a sua complexidade, duração prolongada
e necessidade de hospitalização e/ou anestesia geral.
Além da dificuldade de acesso endoscópico, os outros métodos
diagnósticos diretos ou indiretos do intestino delgado (R-X contrastado,
Tomografia Computadorizada, Ressonância Nuclear Magnética,
Cintilografia) deixam a desejar em termos de precisão e praticidade.
A
tecnologia utilizada no desenvolvimento da cápsula endoscópica
foi gerada pelo Dr. Gabriel Idam, que era o chefe da divisão
de "design" etretro-óptico de uma divisão do
exército israelense chamada Rafael. É uma tecnologia semelhante
à utilizada nas bombas inteligentes que atingem alvos com precisão,
guiadas por telemetria (1) . Em agosto de 2001, o F.D.A.
americano liberou para uso um equipamento denominado GivenÒ Diagnostic
Imaging System, conhecido como "Cápsula Endoscópica",
que é um sistema ambulatorial de endoscopia sem fio acondicionado
numa cápsula com dimensões de 11 X 26 mm, descartável,
com bateria de duração entre 6 - 8 horas. Tem capacidade
de tirar 2 fotos/segundo sob iluminação de 4 L.E.D sincronizados,
realizar o processamento inicial e transmitir por antena própria
sinais de telemetria que são captados por sensores colocados
no abdome do paciente e conectados a um cinturão com um computador
compacto que faz o papel de gravador/processador dos sinais emitidos
pela cápsula. Ao final de 8 horas decorridas da ingestão
da cápsula, os sensores (não descartáveis) e o
gravador são removidos do paciente, promovendo-se então
o "download" das cerca de 50 mil imagens geradas no exame
durante mais 2 horas para uma "workstation" (cada "workstation"
vem equipada com dois "kits de gravação" compostos
de um cinturão, uma fita de sensores, 2 baterias recarregáveis
e 1 gravador cada, acondicionados em maleta própria). Após
o "download", a "workstation" gera um vídeo
de todo o exame, o qual está então pronto para análise,
permitindo ao médico examinar com precisão o trajeto da
cápsula da boca até o ponto em que ela se encontrava ao
término do exame (normalmente já no intestino grosso).
Do
vídeo gerado pela "workstation" podem ser extraídas
fotos no formato JPEG para impressão de alta definição
ou exportadas para arquivo digital, além de vídeos digitais
no formato AVI com 50 segundos de duração relativos a
25 segundos (50 fotos) antes e 25 segundos (50 fotos) depois da imagem
selecionada para análise, e que podem ser gravados em CD-ROM
pela própria "workstation". A cápsula não
é reaproveitada: é expelida naturalmente durante a evacuação
(2). Em que pese o fato de que todo o trajeto do tubo digestivo
pode ser registrado pela cápsula, é no intestino delgado
que ela oferece precisão, obtendo resultados superiores quando
comparada individualmente ou em conjunto com os outros métodos
diagnósticos aplicáveis ao intestino delgado e, sobretudo,
revelando imagens nunca antes conseguidas e cada vez mais surpreendentes
no seu espectro (3,4).
II - ASPECTOS
CLÍNICOS - ENDOSCÓPICOS
Sindrome
de Peutz - Jeghers (hamartomas do delgado).
Na "Digestive
Disease Week" (DDW) de 2002 em San Francisco, Califórnia,
foram apresentados nada menos que 47 temas livres e pôsteres sobre
estudos de cápsula endoscópica envolvendo cerca de 1.000
pacientes de diversas partes do mundo (5) . A maior parte
desses estudos demonstrou que o exame do intestino delgado com a cápsula
endoscópica é significativamente superior aos métodos
convencionais do estudo do delgado, como o trânsito radiológico
intestinal com bário e a enteroscopia na sua modalidade "push".
Ernest G. Seidman, do Hospital Saint-Justine de Montreal (5),
apresentou o primeiro estudo de cápsula endoscópica em
pacientes pediátricos e adolescentes com suspeita de patologias
de intestino delgado, incluindo doença de Crohn, polipose intestinal
e sangramento intestinal oculto. Nesse estudo, a cápsula foi
capaz de fornecer diagnóstico em 82% dos casos, sendo superior
à enteroscopia e ao trânsito intestinal. David Fleischer,
da Clinica Mayo de Scottsdale (5), comparou a acurácia
da "push enteroscopy" do trânsito intestinal com bário
e da cápsula endoscópica em 12 pacientes com sangramento
digestivo oculto, nos quais a cápsula conseguiu demonstrar alterações
no intestino delgado em 83% dos pacientes contra 42% da enteroscopia
e 0% do trânsito intestinal. Ainda nesse estudo, todas as lesões
identificadas pela enteroscopia foram também identificadas pela
cápsula. Em estudo multicêntrico realizado na França,
Michel M. Delvoux, de Nancy (5), comparou a cápsula
endoscópica com a "push enteroscopy" em 59 pacientes
com sangramento intestinal oculto; nos 57 pacientes que completaram
o estudo, a cápsula foi significativamente mais precisa no diagnóstico
de lesões intestinais relevantes. Já um estudo conduzido
por Guido Costamagna, de Roma (5), analisou o trânsito
intestinal e a cápsula endoscópica como primeiros exames
a serem realizados em pacientes com suspeita de doenças do intestino
delgado e concluiu ser a cápsula superior ao trânsito intestinal
nessa situação. Outro trabalho apresentado no DDW de San
Francisco foi conduzido por Ingrid Demedts (5), da Bélgica,
que utilizou a cápsula em 13 pacientes que apresentavam sangramento
intestinal oculto e nos quais a enteroscopia, o trânsito intestinal
e a cintilografia não encontraram a fonte do sangramento. A cápsula
endoscópica foi capaz de identificar a origem do sangramento
em todos os pacientes. Apenas em uma publicação encontramos
referência a ter sido a cápsula endoscópica inferior
no diagnóstico de hemorragia digestiva oculta: foi o trabalho
apresentado por André Van Gossum, de Bruxelas, Bélgica
(5), que avaliou 21 pacientes. Conseguiu detectar lesões
de intestino delgado que pudessem ser responsáveis pelo sangramento
em 28% dos pacientes utilizando os dois métodos, sendo que a
"push enteroscopy" conseguiu identificar mais lesões
do que a cápsula.
A cápsula
endoscópica foi lançada no Brasil em dezembro de 2001,
durante o I Curso Brasileiro de Endoscopia Terapêutica, realizado
na Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, no qual foi
realizado o primeiro exame com a cápsula endoscópica pelo
Serviço de Endoscopia do Hospital Nove de Julho. Esse primeiro
caso foi o do paciente R.M.S., masculino, 48a, sem antecedentes, que
apresentou quadro de HDA caracterizado por melena. A endoscopia digestiva
alta revelou lesões elevadas gástricas de coloração
vermelha, variando de 1 a 4 cm nos seus maiores eixos, com comprometimento
da submucosa; a endossonografia e a colonoscopia foram normais; as biópsias
gástricas revelaram o dignóstico de Sarcoma de Kaposi.
Não foram evidenciados restos de sangue ou sangramento ativo
no momento de exame. Antes de concluir a investigação,
o paciente apresentou novo sangramento e nova endoscopia digestiva alta
foi realizada, assim como uma colonoscopia sem evidências de sangramento
ativo, apesar da presença de sangue digerido no cólon
e íleo terminal. Devido à presença das lesões
gástricas, uma "push enteroscopy" foi realizada sem
achados patológicos. O paciente foi, então, encaminhado
para o exame da cápsula endoscópica, que detectou as lesões
gástricas e lesões elevadas hiperêmicas em jejuno
distal com sangramento ativo por porejamento, fechando assim o diagnóstico
de comprometimento intestinal pelo Sarcoma de Kaposi e localizando o
sítio do sangramento.
A partir de então,
os primeiros 20 exames consecutivos foram analisados na forma de relatos
de caso durante o período de janeiro a junho de 2002. Foram 11
pacientes do sexo feminino (55%) e 9 do sexo masculino; a idade variou
entre 16 e 68 anos (M = 47,6a). 90% tinham endoscopia e colonoscopia,
45% enteroscopia, 50% trânsito intestinal e 25% transfusão
sanguínea. Todos os pacientes foram submetidos a exame de cápsula
endoscópica, tendo seus resultados comparados com os exames de
avaliação convencional do intestino delgado. Foram registrados
efeitos colaterais e tempos de trânsito da cápsula. A cápsula
encontrou achados patológicos em 19 dos 20 pacientes da série.
As patologias encontradas foram divididas em Hemorragia Digestiva Oculta/Obscura
(58%), Doença Inflamatória Intestinal (21%), Polipose
(5%) e outras (16%). Não foram relatados efeitos colaterais ou
complicações atribuíveis ao procedimento. Quando
comparada com a "push enteroscopy", a cápsula teve
uma positividade de 95% contra 33,3%. O tempo médio de trânsito
da cápsula foi de 3,77 segundos no esôfago (min. = 1 s,
max. = 10 s), 94 minutos no estômago (min. = 2 min, max. = 190
min) e 190 minutos no delgado (min. = 92, max. = 368). Em um paciente
a cápsula não atingiu o ceco (6,6%) devido a patologia
de base (linfoma), porém o diagnóstico foi firmado e o
raio-x posterior confirmou a passagem da cápsula. Desse modo,
em nossa experiência inicial a cápsula endoscópica
demonstrou ser um método diagnóstico seguro e eficaz,
capaz de diagnosticar com precisão as patologias do intestino
delgado com resultados superiores aos da "push enteroscopy".
Por fim, considerando
nossos resultados e os trabalhos apresentados em congressos e as publicações,
salientando-se os trabalhos de Blair Lewis de New York (6), que comparou
de modo randomizado a "push enteroscopy" com a cápsula
endoscópica e demonstrou a superioridade desta no diagnóstico
de pacientes com hemorragia digestiva oculta, está implícita
uma mudança na conduta diagnóstica frente a esses pacientes,
sendo que a partir de então a cápsula endoscópica
passa a ser o "terceiro exame" após endoscopia digestiva
alta e colonoscopias negativas na avaliação de pacientes
com hemorragia digestiva e estabilidade hemodinâmica e, de modo
geral, num futuro próximo, será o "primeiro exame"
a ser realizado na avaliação de pacientes com suspeita
de doenças do intestino delgado.
* Endoscopista do
Serviço de Endoscopia do Hospital Nove de Julho - São
Paulo - Brasil
** Chefe do Serviço de Endoscopia do Hospital Nove de Julho -
São Paulo - Brasil |