O
fígado, para realizar suas múltiplas
funções, requer um aporte sangüíneo
elevado. Em conseqüência da dupla irrigação
sangüínea e grande capacidade de extração
de oxigênio, o fígado apresenta certa
tolerância à isquemia. Contudo, quando
submetido a períodos longos de hipoperfusão,
desenvolve deterioração estrutural,
disfunção metabólica e alteração
da microcirculação.
A
lesão hepatocelular decorrente da isquemia
normotérmica ou hipotérmica seguida
de reperfusão (isquemia-reperfusão
I/R), ainda permanece como um dos maiores obstáculos
à cirurgia hepática, principalmente
ao transplante hepático.
Diversos
mecanismos encontram-se envolvidos na fisiopatogênese
da lesão secundária à I/R.
São exemplos dos mesmos a formação
de radicais livres de oxigênio, peroxidação
lipídica da membrana, ativação
de células inflamatórias e produção
de citocinas, disfunção mitocondrial
e aumento do cálcio intracelular.
Estes
mecanismos parecem estar inter-relacionados e se
desenvolvem em duas etapas: 1) fase inicial (aguda,
1-3 horas após reperfusão) que está
associada à produção de radicais
livres de oxigênio e ativação
das células de Kupffer; 2) fase tardia (observada
6-24 horas após reperfusão), cuja
lesão está associada ao acúmulo
de neutrófilos no fígado.
Radical
livre é usado para caracterizar átomos
ou moléculas que contém elétron
não pareado na última camada, sendo
por isso substâncias reativas o suficiente
para causar lesão em estruturas biológicas
como a membrana celular. São produzidos pelos
diversos compartimentos celulares (mitocôndria,
microssomos, peroxissomos e citosol) e são
originados de mecanismos enzimáticos como
a xantina oxidase (XO), NADPH oxidase, citocromo
P-450 e de mecanismos não enzimáticos,
envolvendo hemoproteinas e compostos de ferro.
Os
principais radicais livres conhecidos são
aqueles derivados do oxigênio. Entre eles
os mais conhecidos são: radical hidroxil
(OH.), radical superóxido
(O2.) e radical perhidroxil (HO2.).
Denomina-se estresse oxidativo o estado químico-biológico
em que a produção de espécies
reativas ultrapassa a capacidade antioxidante.
Na
I/R, em conseqüência da redução
da oferta de oxigênio, a síntese de
ATP (adenosina-trifosfato) torna-se bloqueada, com
aumento dos níveis de AMP (adenosina-monofosfato),
que é rapidamente catabolizada em hipoxantina
e xantina, que servem de substrato para a XO.
Esta
enzima sob a forma oxidada é proveniente
da conversão da xantina-desidrogenase (XDH)
durante a hipoxia tecidual. Assim, existe na isquemia
uma grande concentração de xantina,
hipoxantina e da XO sob a forma oxidada. Quando
o fluxo sangüíneo é restaurado,
a XO reage com O2 molecular causando
oxidação das xantinas e liberação
de radicais livres de oxigênio como o radical
superóxido.
Ocorre
então a peroxidação dos ácidos
graxos polinsaturados existentes nos fosfolipídios
das membranas celulares com formação
de novos radicais livres. A peroxidação
dos ácidos graxos da membrana inicia-se através
da retirada de prótons H+ pelos
radicais livres, formação de dienos
conjugados, posterior formação de
hidroperóxidos lipídicos e, por fim,
com a participação de metais catalíticos
(ferro e cobre), decomposição dos
hidroperóxidos e formação dos
radicais alcoxil (RO.) e peroxil (ROO.).
Em conseqüência da lipoperoxidação,
há perda de integridade da membrana com aumento
de sua permeabilidade; alteração no
fluxo de íons transmembrana; disfunção
no transporte de Na+/K+, influxo
excessivo de cálcio e posterior ativação
de enzimas como as proteases, fosfolipases e nucleases,
que autoliticamente produzem colapso das estruturas
celulares, oxidação de proteínas
e morte celular.
O
outro fenômeno que ocorre na fase precoce
é a ativação das células
de Kupffer. Este fato tem sido relacionado à
manipulação do fígado que ocorre
na fase inicial do transplante ou nas ressecções
hepáticas. Esta manipulação
durante o procedimento cirúrgico causa distúrbios
da microcirculação, provocando hipoxia
que estimula a ativação das células
de Kupffer.
Além disso, após a reperfusão
do segmento isquêmico e peroxidação
lipídica da membrana celular, células
de Kupffer são recrutadas e juntamente com
as células endoteliais produzem citocinas
como o Fator Ativador de Plaquetas (PAF), Interleucina
I (IL1) e Fator de Necrose Tumoral (TNF) que iniciam
a resposta inflamatória.
Durante
a segunda fase, denominada tardia, ocorre entrada
excessiva de neutrófilos no segmento isquêmico
do fígado. Estas células causam lesão
hepática por três mecanismos principais:
produção de radicais livres; ação
direta sobre os hepatócitos por meio da degranulação
e liberação de proteases; obstrução
dos sinusóides. Além disso, os neutrófilos
também aumentam a expressão de moléculas
de adesão na superfície da célula
endotelial, aumentando a aderência neutrófilo-endotelial,
ampliando assim a resposta inflamatória.
As
conseqüências destes mecanismos expressam-se
sob a forma de alterações morfológicas,
inflamatórias e degenerativas no segmento
que sofreu I/R. Entre elas verifica-se: balonização
dos hepatócitos, esteatose, congestão
em torno da veia centrolobular, desorganização
das traves de hepatócitos (destrabeculação),
infiltrado inflamatório em torno da veia
centrolobular e necrose hepatocelular.
Em
resumo, a interrupção completa da
perfusão hepática seguida de reperfusão
desencadeia uma cascata de eventos patológicos
que culminam com degeneração, morte
celular e disfunção do fígado,
constituindo nos dias atuais considerável
entrave à cirurgia hepática.