O Professor Renato Locchi, falecido em l978, foi professor de Anatomia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, marcando-se indelevelmente em muitas gerações, por vezes chegando-se a pensar que tenha sido o maior professor, no sentido didático, que a Faculdade de Medicina da Univ. de S.Paulo tenha tido.
Por que suas palavras, seu ensino, suas aulas, impregnaram-se em nossos espíritos, vantajando-se em relação a outros professores de valor não menor? Digo “nossos” espíritos porque também fui aluno de Renato Locchi.
Por que?
Quantos outros professores tivemos, de Clínica e Cirurgia, pesquisadores de escol, formadores de escola do mesmo estalão que Renato Locchi, os quais nos marcaram menos?
Resumindo dados biográficos: o professor Renato Locchi nasceu em Anhambi, interior do Estado de São Paulo, filho de italianos. Formou-se primeiro em Farmácia e depois em Medicna em 1924, pela Faculdade de Medicina de São Paulo. Foi discípulo e assistente próximo, talvez predileto, de Alfonso Bovero, o grande professor de Anatomia, italiano, que veio a S.Paulo, a convite do Dr. Arnaldo Vieira de Carvalho. Bovero, além da matéria - Anatomia - deixou o modelo de como se é professor de medicina em termos de ensino, didática e pesquisa. Deixou esse legado primeiro à Fac. De Medicina da Univ. de S.Paulo.
Nunca o Prof. Locchi deixou de se referir a Alfonso Bovero, como filho que fala do pai, sem reverenciá-lo por uma palavra deixada, por algum ensino não escrito....Parece-me, ao que me lembro, que sempre, em qualquer de suas aulas, havia um momento para Bovero, inserido no contexto do assunto.
O Prof. Liberato DiDio, de quem guardo a memória de amigo próximo, de nível fraternal, foi o maior discípulo de Renato Locchi e, em sua biografia de Renato Locchi, diz que o Professor Locchi professava, em Bovero, uma, entre tantas, das sábias lições de Sêneca, que segue reproduzida: ”admira um homem de alto caráter e tenha-o sempre diante de seus olhos, vivendo como se ele o estivesse observando e agindo como se êle ditasse suas ações".
O fato é que as aulas, melhor dizendo, as conferências do Professor Renato Locchi magnetizaram gerações de médicos.
De novo, por que?
Parece-me que a resposta aproximada a essa indagação, está no fato de ter sido, o Prof. Locchi, por natureza, um artista do ensino. Materializava, de modo sereno ou vivaz, a Pedagogia Médica, tornando suas aulas, que eram conferências, em cenário didático de medicina.
Fazia-o com arte. Conduzindo o assunto, de pronto, inseria gestos, de regra com a peça anatômica nas mãos, testemunha científica do que ensinava. Creio mesmo que, pelo valor didático que continham esses gestos, possam ter sido ensaiados.
Sua aula inaugural do Curso de Anatomia, imantadas de ciência e arte, passaram para a história do ensino na Faculdade USP. A sala repleta de alunos, logo às 8hs da manhã. Deram-se, de regra, em março de cada ano, revividas, não propriamente repetidas. Era o dia em que apresentava o cadáver aos alunos, com as palavras sérias que comandavam respeito ao cadáver, à peça ou ao osso, articulado ou isolado. Era também a primeira aula de moral e ética. O cadáver estava coberto com pano branco, ocupando o primeiro plano do anfiteatro, tendo ao lado o Prof. Locchi . Discorria sobre a biotipologia humana, o valor da prática, o ensino vivo que só o morto sabia dar, descobrindo, em gesto solene e natural, o corpo que participava da aula, em vez de servi-la.
A minha turma teve essa aula a 20 de março.
As aulas teóricas seguiam-se.
Algumas cenas convém ser lembradas;
Se falasse do crânio humano, sobre a mesa de mármore branco, estavam crânios do adulto masculino, do sexo feminino, da criança, do quais se valia, mostrando as fontanelas, seus significados e correlações com o crescimento do cérebro, do peso do cérebro humano e de seu significado na filogênese e na Anatomia comparada; descrevia os tipos cranianos com comentários em relação a raças, grau intelectual, correlações neurológicas e neuro-psíquicas, sem descrever, embora os apontasse citando-os, cada um dos ossos que compõem o crânio e a face, igualmente comentados. É que o conhecimento prático de cada osso haveria de ser feito no laboratório, com o crânio na mão e o livro e atlas ao lado. No exame prático, um a um os alunos, tinham o comprosmisso de, face a face com o Prof. Locchi, descrever osso, articulações ou peças maiores, com todo pormenor.
Se falasse da bacia humana, a diferença da abertura pélvica e do ângulo pubiano eram relacionados à Obstetrícia, seu significado na identificação óssea de interesse da Medicina Legal e as correlações ortopédicas não deixavam de ser despertadas.
Se falasse do coração, mostrava de mão erguida, o fundo de saco de Heller, inserindo-a nesse recesso do pericárdio, na face ínfero-posterior do coração.
Nunca mais se esquecia.
Didática !
Em outros momentos, numa aula-conferência em que pouco deambulava o Prof. Locchi, pouco gesticulada, mas de gestos como que escolhidos, como que acordados pelo tema que vibrava no ar, cientificamente. De súbito, poder-se-iam abrir os braços, como que encantados por pormenores anatômicos, imagem plástica da função. Ou apontava com o indicador em riste elementos anatômicos de especial interesse médico por sua natureza e sede!
Era honestíssimo e rigoroso na cobrança de conhecimentos dos alunos, o que fazia de um em um, como já se disse.
Por que, afinal?
É que o Prof. Locchi, sob o alicerce de homem de ciência e pesquisa, de cultura médica e geral, era artista do ensino, donde, pensamos, o lugar especial que conserva na memória dos alunos da Facudade de Medicina da Unv.de S.Paulo.
Eis o “por que” procurado, segundo me parece. Era artista, apresentando a medicina, ciência e arte, como é definida, expandindo ele a parte artística também para a didática médica.
Faleceu em S.Paulo a 20.6.l978, com 82 anos, no mesmo mês em que nasceu.
Não morreu.
Antonio A. Laudanna
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